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quinta-feira, 13 de maio de 2021

O PNAE, a agricultura familiar e os projetos que estão na contramão do programa



A Contag vem a público esclarecer sua posição contrária ao PL 3292/2020 e a outros que estiveram e estão no mesmo caminho. Não é contra melhorias na legislação, ao contrário, tem atuado constantemente neste sentido, para que os programas e as políticas públicas possam efetivamente chegar aos agricultores e agricultoras familiares. O seu posicionamento levou em consideração algumas questões importantes que, ao invés de melhorar o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), atentam contra ele.

Antes de tudo é importante compreendermos que o PNAE “tem por objetivo contribuir para o crescimento e o desenvolvimento biopsicossocial, a aprendizagem, o rendimento escolar e a formação de hábitos alimentares saudáveis dos alunos, por meio de ações de educação alimentar e nutricional e da oferta de refeições que cubram as suas necessidades nutricionais durante o período letivo” (art. 4º, Lei nº 11.947/2009).

A obrigatoriedade de utilização, de no mínimo 30%, dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) destinados à alimentação escolar para a aquisição dos alimentos da agricultura familiar foi uma conquista da luta do Movimento Sindical – por intermédio do Grito da Terra Brasil – e de outros movimentos sociais do campo, sendo aprovado pelo Congresso Nacional por meio da Lei nº 11.947/2009, conforme previsto no seu art. 14:

“Do total dos recursos financeiros repassados pelo FNDE, no âmbito do PNAE, no mínimo 30% (trinta por cento) deverão ser utilizados na aquisição de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando-se os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e comunidades quilombolas”.

Desde então, durante anos, a partir das proposições e demandas de sua base, a Contag tem participado da discussão e proposição de ajustes e qualificação do PNAE junto com outras entidades da sociedade civil membros do Comitê Consultivo. O Comitê foi formado por entidades de representação da sociedade civil para contribuir com Grupo Gestor do FNDE (constituído por órgãos do Governo Federal), na formulação da política. Infelizmente em 2019 o Comitê Consultivo foi descontinuado, por decisão do governo.

Mesmo assim, o Movimento Sindical continua atento e cumprindo seu papel de defensor dos interesses dos agricultores e agricultoras familiares, inclusive atuando para que grupos mais fragilizados tenham políticas diferenciadas.

O PL 3292/2020, neste sentido, apresentou questões que são preocupantes no que se refere ao PNAE, a saber:

1. Alterações no art. 2º, que trata das diretrizes da alimentação escolar.

a) Alteração do art. 2º, I, para incluir “e nutritivos, cuja elaboração contemple uma maior diversidade de alimentos, sendo reduzida a oferta de alimentos ultraprocessados”.

A mudança não faz sentido porque o próprio texto já fala do “emprego da alimentação saudável e adequada, compreendendo o uso de alimentos variados, seguros, que respeitem a cultura, as tradições e os hábitos alimentares saudáveis”, portanto a ideia já está contemplada.

b) Alteração do art. 2º, V, referindo-se à aquisição dos alimentos “ser preferencialmente pela agricultura familiar, pelos empreendedores familiares rurais e pelas comunidades tradicionais indígenas e de remanescentes de quilombos”.

Uma mudança desnecessária, pois o referido inciso já diz claramente que é também objetivo da alimentar escolar “o apoio ao desenvolvimento sustentável, com incentivos para a aquisição de gêneros alimentícios diversificados, produzidos em âmbito local e preferencialmente pela agricultura familiar e pelos empreendedores familiares rurais, priorizando as comunidades tradicionais indígenas e de remanescentes de quilombos”. A mudança foi incluída apenas para retirar a prioridade da aquisição dos produtos produzidos por indígenas e quilombolas. Para ficar ainda pior, o Substitutivo apresentado retirou a prioridade também dos(as) assentados(as) da reforma agrária, conforme previsto no art. 14 da referida lei.

Neste sentido, o PNAE é uma das políticas que estabeleceram prioridades para os públicos mais vulneráveis, conforme citados acima. Foi resultado de uma ampla e democrática discussão para se chegar a uma lei que promovesse o processo de inclusão produtiva e geração de renda para as famílias do campo, da floresta e das águas. A inclusão de compra, de no mínimo 30%, de produtos da agricultura familiar, foi justamente para criar uma política pública para acesso aos mercados institucionais diferenciando este público dos demais produtores rurais. Da mesma forma, no universo da agricultura familiar, existem os grupos mais fragilizados e a regra, sabiamente instituída, criou a preferência na seleção dos projetos.

2. Alteração no art. 12, que trata da elaboração do cardápio.

A lei já diz que o mesmo deve ser elaborado por nutricionista respeitando-se a cultura, a tradição, os hábitos alimentares e as referências nutricionais locais. O PL inclui a seguinte mudança: “sem excluir a possibilidade de se introduzirem, paulatina e respeitosamente, experiências gustativas que aumentem a qualidade do cardápio”.

A decisão do cardápio é local considerando esses pressupostos. O problema se dá quando a decisão sai de profissional (nutricionista) e abre a possibilidade de se introduzir produtos que não são da cultura e hábitos locais, e se insere o perigo de interesses outros dominarem o mesmo. A experiência gustativa é resultado da disponibilidade dos produtos e do desenvolvimento local, “pautando-se na sustentabilidade e diversificação agropecuária da região, na alimentação saudável e adequada” como já diz o texto original da lei.

3. Alteração no art. 14, que trata da utilização de no mínimo 30% dos recursos repassados pelo FNDE a serem destinados à aquisição de produtos diretamente da agricultura familiar, “priorizando-se os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e comunidades quilombolas”.

O PL acrescenta o art. 14-A: “No mínimo 40% (quarenta por cento) dos recursos repassados pelo FNDE, no âmbito do PNAE, e utilizados para a aquisição de leite, devem se referir à forma fluida do produto adquirida junto a laticínios locais devidamente registrados no Serviço de Inspeção Federal, Estadual ou Municipal, a depender do caso”.

Há mais de uma dezena de Projetos de Lei propondo reserva de mercado para algum tipo de produto e, sendo aprovados, irá prejudicar a formulação do cardápio para o atendimento a alimentação saudável e nutricionalmente adequada para as crianças. Destaca-se que todos os produtos dos projetos estão contemplados levando-se em consideração o art. 12 da Lei 11.947/2020. Criar cotas específicas para alguns produtos, além de criar dificuldades na elaboração de cardápios, poderá prejudicar a participação na comercialização do PNAE para aqueles agricultores(as) familiares que não produzem os respectivos alimentos.

A Lei nº 11.947/2009 e seus normativos regulamentadores não fazem qualquer restrição ao fornecimento de leite na alimentação escolar. Quando se analisa a Lei nº 11.947/2009 e a Resolução 06/2020 do FNDE, a questão do fornecimento de produtos em âmbito local está plenamente atendida pela prioridade de compra estabelecida atualmente no programa. Portanto, não há restrição de compra de leite fluido. Há necessidade de investimentos e apoios de políticas públicas para que os empreendimentos familiares possam processar o produto localmente, inclusive simplificando a legislação tributária, fiscal e sanitária sem abrir mão da qualidade e sanidade dos produtos ofertados. É preciso ampliar as políticas de estímulo às agroindústrias da agricultura familiar, inclusive para que possam processar e produzir leite fluido em âmbito local e regional.

Destaca-se que a Resolução FNDE 06/2020, em seu art. 35, já possui identificação prioritária para as compras, sendo elas: locais, regiões imediatas e intermediárias, Estadual e Nacional com base no IBGE. Portanto, o FNDE já tem definição de “região imediata” para identificar os municípios próximos ou de uma microrregião.

Resolução 06/2020, Art. 35 Para seleção, os projetos de venda (modelos no Anexo VII) habilitados devem ser divididos em: grupo de projetos de fornecedores locais, grupo de projetos das Regiões Geográficas Imediatas, grupo de projetos das Regiões Geográficas Intermediárias, grupo de projetos do estado, e grupo de projetos do país.

§ 3º Entre os grupos de projetos, deve ser observada a seguinte ordem de prioridade para seleção: I – o grupo de projetos de fornecedores locais tem prioridade sobre os demais grupos; II – o grupo de projetos de fornecedores de Região Geográfica Imediata tem prioridade sobre o de Região Geográfica Intermediária, o do estado e o do País; III – o grupo de projetos de fornecedores da Região Geográfica Intermediária tem prioridade sobre o do estado e do país; IV – o grupo de projetos do estado tem prioridade sobre o do País.

Outro ponto a se considerar é a necessidade de investimento público para adequar os espaços escolares, para receber o leite, pois em muitas escolas, especialmente nos municípios mais pobres, falta a devida estrutura para o armazenamento do leite de forma fluida.

Ressalta-se que a cadeia produtiva do leite é uma das principais atividades produtivas da agricultura familiar. Segundo o Censo Agropecuário 2017, do IBGE, são mais de 1,17 milhão de estabelecimentos rurais, sendo a grande maioria da agricultura familiar. A Contag entende que o setor leiteiro é uma das atividades produtivas fundamentais para a geração de trabalho e renda para os agricultores (as) familiares. O leite faz parte da cesta básica e é um dos alimentos essenciais para o desenvolvimento saudável das crianças.

A situação da cadeia do leite vem sofrendo com problemas e, juntamente com as Federações, temos solicitado soluções ao governo federal para o setor desde o ano passado. Reforçamos a defesa dos interesses dos(as) agricultores(as) familiares, incluindo os que atuam na cadeia produtiva do leite que têm sofrido constantemente com problemas de preços, que podem ser minimizados com a aplicação efetiva dos recursos destinados para a Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM), para a regulação de preços do leite e demais produtos, e a sua distribuição às populações necessitadas.

O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que é outro instrumento de política pública para aquisição do leite, teve orçamento superior a R$ 800 milhões em 2020 e para este ano foi previsto pouco mais de R$ 100 milhões na PLOA. É preciso garantir os recursos para essas políticas e programas que são fundamentais na comercialização e garantia de preços mais justos para a agricultura familiar.

A Contag não se furtará a cumprir seu papel de representação da categoria e sempre estará aberta para o diálogo e construção de políticas públicas que venham a beneficiar a agricultura familiar.


FONTE: Direção da CONTAG