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sábado, 11 de março de 2017

REFORMA DA PREVIDÊNCIA

Ceifando os diferenciais da aposentadoria não contributiva

Exemplo de que os tempos são de retrocessos inexplicáveis é a tentativa de mudança nas regras do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e na aposentadoria rural, contida na proposta da reforma da Previdência do governo Temer (PEC 287).
Antes mesmo que o combate à pobreza se tornasse um dos pilares dos sistemas de proteção social, a Constituição de 88 passou a garantir aos pobres idosos (acima dos 65 anos) e aos portadores de deficiência um benefício não-contributivo, livre de condicionalidades, no valor de um salário mínimo, que lhes permitisse sobreviver dignamente.
Idem no caso das aposentadorias rurais. Também se assegurou aos pequenos produtores rurais em regime de economia familiar, logo com baixa capacidade contributiva, porque envolvidos com seu sustento, o direito a um benefício previdenciário, independente de contribuição prévia nos termos exigidos aos demais trabalhadores. O Brasil foi dos primeiros países em desenvolvimento a aplicar a regra vigente nas economias avançadas, que, através dos regimes de repartição simples, contempla com uma aposentadoria básica aqueles que não tiveram condições de contribuir plenamente.
Lá onde se fechou por completo a previdência pública impondo uma transição autoritária a um regime de capitalização, com base em contas individuais – Chile – foi preciso voltar atrás e reintroduzir aposentadorias públicas, notadamente de caráter não contributivo. Foi o que fez Michele Bachelet quando, no seu primeiro mandato, instituiu a pensão básica solidária. A partir dos 65 anos, quem não tiver aposentadoria e fizer parte dos 60% mais pobres da população tem direito ao pilar básico. A pensão básica solidária também cobre os portadores de deficiência. Lembra algo?
Qualquer análise acerca da evolução dos sistemas de proteção social no mundo, por mais superficial que seja, vai concluir que essa regra hoje se aplica aos países de renda média e renda média alta, como o Brasil. A África do Sul há décadas instituiu uma aposentadoria universal para seus idosos, sem vínculo prévio, e a nossa vizinha Bolívia ultrapassou a taxa de cobertura previdenciária do Brasil – hoje a segunda mais alta da América Latina – graças à Renda Dignidad, que usa os royalties do gás para oferecer a todos os seus anciãos, homens e mulheres, uma aposentadoria universal.
Mais do que isso, essa é a regra propugnada pelas agências multilaterais – leia-se Banco Mundial e associados. A chamada proteção econômica aos idosos foi transformada em paradigma. Não por acaso, somente na América Latina, entre 2000 e 2013, pelo menos 18 países adotaram uma aposentadoria não contributiva. Os méritos de uma política como essa se estimam de várias maneiras. A primeira é que dentre as pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza do Bolsa Família, menos de 1% são idosos. E uma das funções das aposentadorias, além de promover a suavização do consumo, oferecer um seguro contra riscos e promover a redistribuição é ser efetiva na redução da pobreza. Nesse quesito, novamente, o Brasil é referência.
Ora, o desenho da PEC 287 joga fora o que nos permitiu ser mais efetivos na luta contra a pobreza e a desigualdade nos anos recentes. Pretende eliminar o diferencial de menos cinco anos para a aposentadoria do trabalhador rural, estabelecendo idade mínima equivalente à do trabalhador urbano (65 anos). Ignora as condições assimétricas de trabalho e de vida entre o meio rural e o meio urbano, cujo hiato agudo perdura, como confirmam os estudos do IBGE.
Se faz isso em nome da uniformidade nas idades mínimas, como justificar, então, a elevação da idade de 65 para 70 anos para concessão do BPC aos idosos? A nova regra retroage a idade mínima para 70 anos, ou seja três anos a mais do que quando da criação do BPC (à época, a linha de corte era 67 anos, caindo para 65 na década de 2000). Penaliza, portanto, os mais vulneráveis ao lhes exigir cinco anos a mais para se aposentar que ao resto da população.
Por que dois pesos e duas medidas? Por que os mais miseráveis hão de penar mais tempo para obter uma renda de substituição na velhice? Por que discriminar mais uma vez quem foi discriminado a vida toda?
Há outro ponto crucial. O fim da vinculação do BPC e das aposentadorias rurais ao salário mínimo põe em risco o valor desses benefícios. A PEC não define como serão reajustados, podendo variar em função de interesses fiscais ou políticos, sem assegurar o patamar mínimo de consumo que justifica a existência de aposentadorias básicas.
A quase totalidade das aposentadorias rurais e a totalidade do BPC têm valor igual ao salário mínimo e beneficiam juntas uma população de aproximadamente 13 milhões de pessoas. Desvincular tais benefícios do salário mínimo vai certamente incentivar o êxodo rural e jogar lenha na favelização das periferias e áreas centrais. As consequências são previsíveis: vão desde o desabastecimento das pequenas cidades que dependem da agricultura familiar até a elevação dos preços dos alimentos, reforçando ainda a concentração fundiária.
A aposentadoria rural, ao alcançar 8,5 milhões de beneficiários, representa movimentação econômica e incremento do PIB para os pequenos municípios. Entre os 10% mais pobres, aposentadorias e pensões chegam a representar 17,1% do PIB dessas cidades. Para melhor apreender a magnitude desse impacto vale apontar que o pagamento de benefícios previdenciários representa um valor superior ao Fundo de Participação dos Municípios (FPM) em 70% dos municípios brasileiros.
O governo dá as costas a um modelo social que, com todas as suas debilidades, contemplou “avant la lettre” o paradigma dos pisos de proteção social que vingou no pós-crise de 2008. O lema é elevar e manter a renda dos idosos, desempregados, crianças e outros grupos expostos à insegurança econômica, com transferências em montante adequado ao grau de desenvolvimento de cada sociedade.
O Brasil não apenas engatou a marcha a ré, como avança na contramão das reformas efetuadas no resto do mundo. Claro está que esse governo desconhece regras elementares dos sistemas previdenciários contemporâneos. Pelo que se vê, a falta de conhecimento é mesmo sua marca registrada.

Lena Lavinas é Fellow 2016¬2017 do Wissenschaftskolleg (Institute for Advanced Study) de Berlim.
Denise Lobato Gentil é professora do Instituto de Economia da UFRJ.

FONTE: Lena Lavinas e Denise Gentil - Publicado no Valor